O espetáculo musical ENCANTARIA foi premiado pelo PROAC – Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (série de 6 concertos no Estado de São Paulo – ano 2012) e é vencedor do PRÊMIO FUNARTE DE MÚSICA BRASILEIRA, como parte do projeto do Grupo ANIMA: “ANIMA 25 ANOS DE MATRIZES DA MÚSICA BRASILEIRA” (série de 06 concertos ENCANTARIA, 6 concertos didáticos e oficinas junto às Universidades: UFMG, UDESC, UNESPAR, UFPR, Fundação Carlos Gomes, Belém, UNESP e UFG). Este espetáculo teve sua première internacional no Festival Innovantiqua, Winterthur, Suíça, em 2013 e obteve o patrocínio do SELO SESC do Estado de São Paulo para a gravação do CD, finalizada em maio de 2015, com lançamento em 2017 e 2018.


O núcleo do espetáculo musical, da gravação do CD e impressão do livro/encarte do CD comemorativos de seus 25 ANOS de trabalho, são as religiões afro-brasileiras com seus rituais de ENCANTARIAS, juntamente com as CHEGANÇAS DE MOUROS estudadas e recolhidas por Mario de Andrade na Primeira Missão de Pesquisas Folclóricas de 1929 no Nordeste do Brasil, contidas no 1º. Tomo da coleção Danças Dramáticas do Brasil. O primeiro passo para o encontro do Anima com o Tambor-de-Mina do Maranhão e com as Cheganças de Mouros do Nordeste é o mito do Rei “ENCANTADO” - Dom Sebastião (1554-1578), seu desaparecimento na Batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos (04 de agosto de 1578) e a possibilidade de seu ressurgimento na “Ilha Encoberta”, ou nas “Ilhas Afortunadas”, saindo da condição de “Encantado”, de “Encoberto”, para a condição de “Salvador do Mundo, dos oprimidos e da Nação”, possibilidade esta ainda pulsante no imaginário popular brasileiro. Este legado musical popular brasileiro é a fonte onde origina todo o espetáculo musical de “ENCANTARIA”.

Será no Estado do Maranhão, na Ilha dos Lençóis e nos rituais afro-brasileiros de São Luís que o rei encantado é fartamente impresso através dos toques dos tambores-de- mina da religião dos voduns (orixás), como também em demais manifestações populares, como nas toadas de bois, no bumba-meu- boi com a estrela na testa que recorda a lenda do touro encantado: “um grande touro negro, com uma estrela brilhante na testa, que aparece em noites de sexta-feira, na Ilha dos Lençóis” (FERRETTI). Dizem alguns que Dom Sebastião costuma aparecer principalmente em junho, durante as festas do bumba- meu-boi, e em agosto, época do aniversário da batalha de Alcácer-Quibir.


O termo “tambores-de-mina” designa a religião dos voduns trazida pelos negros escravizados, os escravos “minas”, negros sudaneses, do Estado do Maranhão: religião iniciática e sacrificial onde as entidades que se incorporam nos “iniciados” em transe podem ser os voduns ou os encantados. (PRANDI) Segundo Mundicarmo Ferretti “os encantados são pessoas que viveram na terra e desaparecem misteriosamente, aparentemente vencendo a morte, e que acredita-se que passaram a viver em outro plano, como o Rei Sebastião”. (FERRETTI)

Na comunicação “Dom Sebastião, o santo e o rei na Encantaria e no folclore maranhense”, Sérgio Ferretti resume a lenda da seguinte maneira:


Afirma-se que as dunas de areia da Ilha dos Lençóis têm semelhanças com o campo de Alcácer-Quibir, onde El rei Dom Sebastião desapareceu. Lençóis é considerada uma ilha encantada, que serve de morada a Dom Sebastião. Seu reino está oculto no fundo do mar, próximo àquela ilha. O rei vive em seu palácio submerso e seu navio nunca encontra a rota para Portugal. Dizem que nas noites de sexta-feira Dom Sebastião aparece na praia na forma de um touro negro, com uma estrela de ouro na testa. Se alguém atingir a estrela e ferir o touro, o reino será desencantado, a cidade de São Luís irá submergir e aparecerá uma cidade encantada com os tesouros do rei.


Da mesma maneira que o ANIMA enfatiza os rituais dos tambores-de-mina do Maranhão, abordará a Batalha de Alcácer Quibir, local do encantamento de Dom Sebastião, através do olhar do mouro subjugado pela igreja católica e pela coroa portuguesa, lançando mão do repertório das Cheganças de Mouros recolhido por Mario de Andrade em 1928, que finalizam o CD. A rítmica aditiva do Oeste africano e alguns padrões rítmicos do Gnawa do Magreb, permeiam todo espetáculo, ora como estrutura, ora como “pano de fundo”, pondo em evidência, mesmo no repertório do Renascimento e do Barroco ibéricos, o legado sonoro desses povos subjugados até hoje, mas fortemente presentes e pulsantes no imaginário sonoro brasileiro atual.

ENCANTARIA resulta na criação coletiva de um roteiro dramatúrgico musical que conduz o ouvinte a uma concretização contemporânea da música tradicional popular brasileira, onde as fronteiras entre as matrizes e entre os tempos mítico e histórico são diluídas. Coerente com a missão camerística do Grupo ANIMA, ENCANTARIA é construído partindo de estímulos musicológicos, etnomusicológicos e organológicos, mas, sobretudo, a partir de estímulos gerados pelo encontro entre diferentes linguagens artísticas. Neste sentido, em ENCANTARIA, o Grupo ANIMA conta com o diálogo e a colaboração do fotógrafo Fernando Laszlo, que ilustra o CD ENCANTARIA, com suas imagens de desertos e areias, desde o Deserto Taklamakan (China), às areias do litoral baiano. No projeto ENCANTARIA parte dos estímulos e informações referentes à Batalha de Alcácer Quibir, o surgimento do mito milenarista português sobre a figura de Dom Sebastião e o surgimento deste mito em Canudos e na região de Pedra Furada, foram frutos de diálogos com a escritora WALNICE NOGUEIRA GALVÃO, que sugeriu o tema milenarista ao Anima, ofereceu bibliografia que versa sobre o tema e produziu textos que foram, num processo coletivo, debatidos entre os artistas. Debates sobre a transformação do mito messiânico, ligado à imposição do catolicismo e à extinção do islamismo do Norte da África, em um riquíssimo ritual que acontece até os dias de hoje nas casas de mina, no Maranhão, foram possíveis a partir das pesquisas da antropóloga maranhense Mundicarmo Ferretti. Dessa forma, no encarte do CD tivemos a grata satisfação de contar com um texto de WALNICE NOGUERIRA GALVÃO e outro texto escrito por MUNDICARMO FERRETTI, sobre o ritual cujo repertório nuclear permeia este espetáculo/CD.


A pesquisa e a seleção de repertório musical é realizada pelos integrantes do Grupo ANIMA em parceria com a ASSOCIAÇÃO CULTURAL e ACERVO MUSICAL CACHUERA! (SP) – dirigidos pelo etnomusicólogo e percussionista PAULO DIAS – e pela ASSOCIAÇÃO IHU de música indígena – dirigida pela compositora MARLUI MIRANDA, ambos também músicos integrantes do Grupo ANIMA.


A investigação dos instrumentos utilizados pelo Grupo ANIMA transborda a bibliografia organológica quando cada músico do Grupo dialoga com os artistas/artesãos, construtores de seus instrumentos. Sejam estes construtores das tradições brasileiras, ou construtores (paleomusicólogos) de instrumentos europeus da Idade Média, da Renascença e do Barroco, cujos originais encontram-se em coleções e museus europeus.


Desta forma, o CD e o espetáculo do Grupo ANIMA, “ENCANTARIA”, carregam os procedimentos de trabalho de criação coletiva desenvolvidos pelo Grupo ANIMA, ao longo de 25 anos. Este espetáculo e CD são realizados como parte das comemorações de seus 25 anos de trabalho junto à música de tradição oral brasileira e às suas intersecções com a música dos ancestrais dos brasileiros, indígenas, africanos, da Península Ibérica.


A criação de arranjos em cooperação artística entre os integrantes do Grupo: Paulo Dias (percussão), Marlui Miranda (canto e percussão), Gisela Nogueira (viola de arame brasileira), Luiz Fiaminghi (rabecas brasileiras e vielle medieval), Silvia Ricardino (harpa medieval e da Renascença) –, Valeria Bittar (flautas históricas e flautas indígenas brasileiras) e Cecilia Arellano (mezzo soprano – artista convidada.


BIBLIOGRAFIA


FERRETTI, Mundicarmo. Encantados e Encantarias no folclore brasileiro. Em: IV Seminário de Ações Integradas em Folclore, São Paulo, 2008.

PRANDI, Reginaldo. Nas pegadas dos voduns: um terreriro de tambor-de- mina em São Paulo. Capítulo publicado em: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Somavó, o amanhã nunca termina. São Paulo, Empório de Produção, 2005. pp. 63-94.