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- Montagem de Cd e Espetáculo MAR ANTERIOR

 

Sem título

Horizonte

O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa


Ao celebrar 30 anos, o Grupo ANIMA de música de câmara brasileira propõe a montagem do projeto pluridisciplinar MAR ANTERIOR. Seu núcleo assentado na música popular tradicional brasileira será direcionado à sonoridade de cantos trazidos por milhares de negros marcados pelo trauma da escravidão. Este núcleo sonoro será apresentado em performance dramatúrgico-musical e irá dialogar sobre o palco e no CD e em seu encarte com as artes visuais, através das ilustrações, do cenário e instalação criados pela artista gráfica e multimídia ROSANA PAULINO, com o teatro, sob direção cênica de MARIA THAÍS, figurinos de MÁRCIO MEDINA e desenho de luz de FÁBIO RETTI (CIA Balagan). A montagem do espetáculo MAR ANTERIOR será base para gravação do CD homônimo, cujo livro-encarte de112 pags. será ilustrado por ROSANA PAULINO. O CD MAR ANTERIOR será o terceiro da série IMAGINÁRIO SONORO BRASILEIRO, tríptico idealizado pelo ANIMA e realizado pelo Selo SESC SP, que teve início em 2010 com o espetáculo e CD DONZELA GUERREIRA e o CD ENCANTARIA (2017). Transitará sonoramente entre a poética de cantigas de orixás em língua Yorubá e a poesia medieval ibérica. Seu ponto nevrálgico é a saudade a partir da diáspora africana, do trauma e do esquecimento. Junto das embarcações construídas com os pinheiros de Leiria (Portugal), plantados por Dom Dinis, ainda na Idade Média, o repertório inédito parte das 7 cantigas de amigo escritas por este rei trovador, consideradas o marco inaugural dos cantares lusos da saudade, encontradas em fragmentos em 1990 no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa). ANIMA propõe uma leitura crítica através de arranjos que fazem emergir destes fragmentos linhas-guias das cantigas dos orixás de rituais do candomblé, recolhidas por Camargo Guarnieri em 1937, em Salvador. Os arranjos serão criados coletivamente entre os integrantes do Grupo em seus LABORATÓRIOS DE ARRANJOS COLETIVOS, prática que acompanha o grupo ANIMA nesses 30 anos, bem como por compositores convidados:

 

LIDUÍNO PITOMBEIRA | site – UFRJ

ACÁCIO PIEDADE | Lattes – UDESC

 

Nestes arranjos serão destacados a polirritmia e a polimetria dos tambores dos orixás, confrontando e entrecruzando danças e cantigas da Idade Média europeia, evidenciando o mito lusitano da SAUDADE não como um sentimento exclusivo do português colonizador, mas sobretudo, como sentimento gerado pelas grandes navegações causadoras das DIÁSPORAS – separações forçadas ou voluntárias relacionadas ao projeto expansionista, colonizador e conversionista dos países católicos ibéricos, deflagrado pela Contra-Reforma.

MAR ANTERIOR justifica-se por dar visibilidade a fontes e origens de uma música escondida, através de um olhar crítico sobre o apagamento de culturas subjugadas. Apresenta canções inéditas tradicionais populares brasileiras e da Idade Média ibérica. Evidencia o encontro da música dos povos conquistados e apartados de suas origens, no caso povos africanos escravizados, com o sentimento de saudade contido na poesia medieval portuguesa e na música - poesia de tradição oral brasileira. Traz junto ao movimento diaspórico da escravidão as pequenas migrações e peregrinações, num momento histórico atual onde as imigrações e o racismo tomam conta das relações sociais. Como pano de fundo permeiam o oceano, a saudade e o trauma da escravidão.

Como num palimpsesto [Palimpsesto (do grego antigo παλίμψηστος, transl. "palímpsêstos", "aquilo que se raspa para escrever de novo": πάλιν, "de novo" e ψάω, "arranhar, raspar") designa um pergaminho ou papiro cujo texto foi eliminado para permitir a reutilização. Tal prática foi adotada na Idade Média, sobretudo entre os séculos VII e XII, devido ao elevado custo do pergaminho'. A eliminação do texto era feita através de lavagem ou, mais tarde, de raspagem com pedra-pomes.] os arranjos contidos no programa musical fazem emergir dos manuscritos medievais europeus os sons da ausência dos povos submetidos à brutalidade do colonialismo e do escravismo, e ainda hoje marginalizados como cidadãos de segunda classe na sociedade nacional, onde o sentido de ausência pode ser estendido (entendido) como perda da própria condição de pessoa humana.

O Grupo ANIMA frisa neste projeto a importância de trazer à tona repertórios apartados de nossa memória musical tradicional e que foram recolhidos e registrados, entre as décadas de 1920 e 1940 por dois grandes músicos e pensadores de uma cultura musical identitária brasileira: Mário de Andrade e Camargo Guarnieri, que, em 1937 seguiu de São Paulo para os terreiros do candomblé afro-brasileiros de Salvador, com a missão de recolher os cânticos dos orixás do candomblé Kêtu, Angola e do Candomblé de Caboclo, missão esta também organizada por Mário de Andrade, através do então Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. Este repertório ficou adormecido ao longo de décadas e, através de pesquisas do Grupo ANIMA, do Ogã LEANDRO PERES (convidado a participar do CD e da montagem do espetáculo musical MAR ANTERIOR), e de etnomusicólogos como TIAGO DE OLIVEIRA PINTO e PAULO DIAS, foi reconstruído e atualizado nos arranjos apresentados no programa MAR ANTERIOR.

ANIMA traz à tona sonoridades apartadas de nossa memória, recolhidas, entre 1920 e 1940 por dois músicos e pensadores de uma cultura identitária brasileira, Mário de Andrade e Camargo Guarnieri, que, em 1937 seguiu para os terreiros do candomblé afro-brasileiros de Salvador, com a missão de coletar cânticos dos orixás, do candomblé kêtu, angola e de caboclo. Este repertório apagado e adormecido por décadas e revivido por pesquisas do Grupo e de etnomusicólogos como Tiago de Oliveira Pinto e Paulo Dias, foi atualizado nos arranjos. Também inéditas são fontes pesquisadas por Mário de Andrade nas Missões de Pesquisas Folclóricas (1928 e 1938), em especial cantigas de cego, onde o tema das peregrinações, radicado na poesia trovadoresca europeia é recorrente.

Junto ao repertório afro-brasileiro apresenta 7 cantigas praticamente inéditas escritas pelo rei D. Dinis (1261-1325), encontradas pelo pesquisador H. L. Sharrer em 1990 na Torre do Tombo, Portugal, em pergaminhos fragmentados e recuperadas pelo musicólogo Manuel Pedro Ferreira. Essas cantigas estão entre as mais importantes descobertas musicológicas da atualidade. Ao realizar o registro das únicas canções de amigo que contêm a partitura musical de autoria do rei trovador e interligar esta tradição aos resquícios da arte de trovar que persistiram na cultura oral brasileira, ANIMA traz como pano de fundo o Oceano e a Saudade. Porém em MAR ANTERIOR a cantiga de Dom Dinis não representa somente o legado do trovar português, mas, sobretudo, as navegações e o trauma da escravidão e das diásporas que carregam como marco inicial D. Dinis, que Fernando Pessoa nominou “O plantador de Naus”.

 

Etapas: pesquisa de repertório encontrado em registros históricos de música afro-brasileira; pesquisa de repertório medieval ibérico; seleção de repertório; pesquisa e seleção de imagens; 5 oficinas temáticas abertas ao público de cultura e música afro-brasileiras, música e cultura medieval; arranjos coletivos; dramaturgia e roteirização; composição de imagens e cenário; montagem; ensaios; criação do “Núcleo de estudos e difusão das músicas e dos instrumentos tradicionais populares e históricos” - UDESC